Recentemente a Embaixada da Alemanha lançou um vídeo contra o nazismo e o “radicalismo de extrema direita”, e causou polêmica na internet. Como de costume, na internet (especialmente no Brasil) todo tipo de resposta foi dada ao vídeo: de gente negando a existência do holocausto a pessoas dizendo que nazismo é uma ideologia de direita. E de dentro desse último grupo, veio todo o tipo de argumento: desde o senso comum que se instalou recentemente em uma parcela de conservadores brasileiros, de que se o partido se chama “Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores” significa que é socialista, logo, de esquerda; até argumentos mais racionais, pontuando algumas semelhanças nazismo com a ideologia comunista (coletivismo, controle da economia, anticapitalismo…).
Rapidamente veio a imprensa, colocou todas essas pessoas no mesmo balaio (como você pode ler nessa matéria do El País), e o fato se tornou viral na internet. “Brasileiros passam vergonha e Embaixada da Alemanha dá aula sobre nazismo”. E, infelizmente, muita gente sem posição política definida e que nem está dentro de qualquer debate político passou a compartilhar esses conteúdos.
Antes de tudo, deixo claro que esse texto não tenta definir uma posição ao nazismo dentro do espectro político. A ideia é só mostrar que um debate conceitual e teórico não só pode como DEVE existir. Não é uma discussão de fatos, é uma discussão de ideias. E um conceito não passa a ser fato só por ter sido repetido incansavelmente. Para colocar minha opinião pessoal, eu defendo que o nazismo não se encaixa nem na direita, nem na esquerda. É uma ideologia a parte, que usou conceitos de direita, de esquerda, e adicionou vários conceitos próprios, alguns retirados (e deturpados) de mitologias antigas (como a nórdica, a germânica e até mesmo algumas orientais, como a hindu e a taoísta). Também defendo que a definição de direita e esquerda como temos é arcaica e pobre.
Voltando ao assunto, após todas as críticas a quem se opôs a ideia do nazismo ser de direita, os únicos argumentos colocados à favor dessa tese foram: ‘se a embaixada da Alemanha disse que é, então é’ ou ‘é assim que a gente aprende na escola’. Essa falácia comum se chama argumentum ad verecundiam, o que conhecemos basicamente como argumento de autoridade. O argumento de autoridade pode ser valido ou não, dependendo do seu conteúdo. A questão é que nesse caso não foi apresentada nenhuma informação. Outras falácias comuns nesse tipo de debate é argumentum ad ignorantiam e argumentum ad populum. O primeiro toma como premissa que o desconhecimento sobre um argumento faz com que ele não existe ou seja invalido, e o segundo é basicamente a muleta do senso comum (inimigo mortal desse blog).
Como eu disse anteriormente, a natureza da questão não é factual, mas conceitual. Hoje em dia existe dificuldade em separar as duas coisas, especialmente no meio acadêmico (que adora apelar às falácias ad verecundiam e ad hominem – invalidar o autor do argumento, e não o próprio argumento -, duas formas de “elitizar” a academia e tentar monopolizar as ideias), que toma suas teorias favoritas como verdade absoluta. O debate acerca do tema “espectros políticos” não apenas é bom, como também necessário. Os conceitos clássicos de direita e esquerda já não comportam precisamente as correntes políticas atuais. Hoje em dia podem ser chamados de extremistas de direita tanto nazistas quanto libertários, e ambos os conceitos são diametralmente opostos. Há algumas teorias mais recentes que aprofundam um pouco essa visão unidimensional, como a Teoria da Ferradura e o Diagrama de Nolan, mas ainda se mostram pouco satisfatórias por serem demasiadamente generalistas. Outro fator que altera muito definições de direita e esquerda é o ponto de referência teórico. Um comunista revolucionário vê um social democrata como direitista inimigo da causa, e um libertário vê um conservador estatista como esquerdista autoritário (ou, em alguns casos, considera qualquer pessoa que defenda a existência do Estado, por menor que seja, como esquerdista). E ambos estão certos a partir do momento que assumirem que é um conceito pessoal. Com a definição de um referencial, é mais simples efetuar essa classificação. Entretanto, não existem valores universais na política, e valores pessoais definem um ponto de vista, e não um conceito geral.
A partir disso, podemos pegar praticamente qualquer referencial teórico e dificilmente o nazismo vai se encaixar em qualquer um dos lados. Reitero que o objetivo é só suscitar o debate, não defender algum ponto. Então vão aí alguns pontos da ideologia nazista e como eles poderiam se encaixar no espectro.
- Antissemitismo: apesar do fundamento anticapitalista em parte do ódio aos judeus, não é uma característica específica nem de direita, nem de esquerda.
- Racismo: esse é um ponto complexo e polêmico. Existe uma mistura e deturpação de diversos assuntos para se colocar o racismo do lado da direita. Além disso, a bandeira de luta pelas minorias é bandeira da esquerda pós-moderna (que não é defendida por todos os esquerdistas). Ainda assim, a política racista não é característica a nenhum lado (esse ponto gera um texto só sobre ele).
- Nacionalismo: outra questão complexa que mostra como esses conceitos simplistas devem ser quebrados. Existem nacionalistas de direita e nacionalistas de esquerda, apesar do marxismo ter viés internacional e defender a união da classe proletária, independente da nacionalidade. Com a globalização cultural e o comércio internacional, essa questão se tornou complexa.
- Populismo: nesse setor é melhor trabalharmos com exemplos: Lula, Bolsonaro, Hugo Chávez, Donald Trump, Evo Morales, Getúlio Vargas. Precisa dizer mais alguma coisa?
- Anticapitalismo: é um ideal de esquerda, mas muitos políticos considerados de direita se opõe mais ao livre mercado que outros de esquerda. Por exemplo, as ideias de protecionismo de Enéias eram muito mais rígidas que a política econômica adotada por Lula.
- Antimarxismo: por dedução lógica, é uma posição de direita. Mas é necessário pontuar que o regime que mais matou comunistas no mundo foi o próprio comunismo. A guerra ideológica é intrínseca à esquerda (Trotsky vs. Stalin, por exemplo). Mas, apesar de todo o revisionismo e afastamento (especialmente da esquerda pós-moderna) seria leviano dizer que é característica de esquerda, já que toda a teoria esquerdista orbita em volta de Marx.
- Totalitarismo: Novamente, vamos aos nomes. Pinochet e Stalin…
- Meios de Produção: aí entra um dos pontos mais específicos do nazismo. Apesar da manutenção da propriedade privada, o nazismo exercia controle total na produção bem como na definição de preços na sociedade nazista. É uma mistura de esquerda clássica com direita.
- Propriedade Privada: em meio a todos os poréns (tanto no nazismo quanto na esquerda pós-moderna), a propriedade privada não foi abolida no nazismo. Classicamente é um conceito de direita.
- Política trabalhista: direitos trabalhistas foram criados e sindicatos fortalecidos. Bem como nos meios de produção, o Estado praticava um controle rígido nessas instituições. Nesse ponto, a grande influência do nazismo foi o fascismo, este originado do corporativismo/sindicalismo. A esquerda também defende mais leis trabalhistas e o fortalecimento dos sindicatos.
Além dessas, existem outras características do nazismo que podem ser interpretadas das mais diversas formas (por exemplo, você sabia que o nazismo foi um dos introdutores do conceito de “Direito dos Animais”?).
A discussão não é importante para enquadrar o nazismo em si, mas para repensarmos todas essas definições fajutas que utilizamos no dia a dia sem nos darmos conta. Afinal, nem mesmo Lula ou FHC podem ser definidos objetivamente no conceito simplista que tomamos como convenção. Ambos são esquerdistas assumidos, mas assumiram políticas econômicas de direita. E mesmo as posições de esquerda e as políticas adotadas por ambos são diferentes. O debate é importante, nesse e em qualquer outro setor da política. Quando nos fechamos a conceitos teóricos pré definidos, atrofiamos nosso cérebro e toda a discussão acerca do tema. E temos tendência a reduzir as discussões por mera preguiça de pensar, afinal, dá muito mais trabalho do que aceitar as convenções disponíveis. Por isso muitas pessoas hoje defendem que nazismo é de esquerda por ser a abreviação de Nacional-Socialismo, ou que é de direita porque a escola e a embaixada alemã disseram, mesmo sem apresentar motivos concretos para tal.